Cidades, estradas e bombeiros: a influência da imigração alemã em SC

Se a resiliência e o denodo da imigração alemã ajudam a explicar o êxito das colônias germânicas no Sul do Brasil, a capacidade de somar esforços para vencer os imensos desafios da adaptação à nova terra foi fundamental desde o desembarque dos primeiros colonos, particularmente no Vale do Itajaí e no Norte e Nordeste de Santa Catarina.

Abastecimento do comércio na antiga Cachoeirastrasse, a atual rua Princesa Isabel, é uma influência da imigração alemã – Foto: DIVULGAÇÃO/ND

Neste sentido, o modelo adotado em Joinville e região é emblemático. Ali, até hoje subsistem exemplos de associativismo que não só permitiram a consolidação da colônia, como permanecem dando bons frutos para a comunidade.

Na total ausência de infraestrutura, os imigrantes tinham no associativismo, na reunião de pessoas de diversas em formação, mas com uma base cultural comum, uma grande ferramenta de transformação. Já em 1855, quatro anos após a chegada dos colonos, foi criada uma sociedade dos proprietários de imóveis, denominada Comuna da Colônia, que por 14 anos desempenhou a atividade de conservação das estradas, caminhos e pontes, com recursos arrecadados por meio de impostos. Ela desapareceu em 1869, com a criação da municipalidade (a cidade de Joinville).

O caso da Sociedade Corpo de Bombeiros Voluntários é um dos mais representativos dessa realidade. Criada em 1892, a corporação é a mais antiga do gênero na América Latina e há mais de 130 anos atende a todas as demandas dos joinvilenses, salvando vidas e patrimônios em ocorrências de combate a incêndios, salvamento aquático, resgate na selva e outras emergências.

“O prestígio dos voluntários é tal que em cada curso oferecido para a formação de novos bombeiros a procura é dez vezes maior que a oferta de vagas – na proporção de 500 para 50, em média”, ressalta o presidente dos Bombeiros Voluntários, Moacir Thomazi.

Ajuda mútua

O escritor e historiador Apolinário Ternes tem vários livros sobre o assunto e sobre a história de Joinville, e fala com autoridade do associativismo como fator preponderante para o sucesso do movimento migratório que começou em meados do século 19.

“A ajuda mútua fortalecia os imigrantes e ampliava as chances de êxito de sua jornada”, afirma ele.

Casa de Ottokar Doerffel – Foto: Divulgação/ND

“É um traço cultural de raiz dos alemães, que já haviam passado por séculos de dificuldades na evolução econômica da terra natal. A Alemanha não era um Estado organizado, mas uma federação com ducados, principados e reinos que se uniam apenas pela língua. A organização de um Estado se deu somente em 1871, quando Joinville já tinha 20 anos de história. Quando aqui chegaram, os imigrantes já trouxeram um histórico de colaboracionismo, que ajudou a criar raízes e a definir a identidade da colônia”, escreveu.

União de esforços para superar muitos desafios

No livro “História Econômica de Joinville”, Apolinário Ternes diz que esta região do Estado foi ocupada por “colonos qualificados, muitos com ensino superior, outros já profissionais, e gente relativamente culta para os padrões da época”. Ainda assim, foi preciso muito esforço para enfrentar o frio rigoroso do inverno, o calor, a umidade, os indígenas e o isolamento inicial, com carências de toda ordem.

Por isso, o associativismo abarcou uma série distinta de atividades. Desde cedo, a colaboração permitiu o surgimento de associações em áreas como o teatro, a música, a imprensa, a indústria e projetos de infraestrutura que mudaram, em poucas décadas, a configuração da colônia. A construção da estrada Dona Francisca, ligando Joinville a São Bento do Sul, deu início a um boom econômico sem precedentes, aproveitando a fartura de madeira e o beneficiamento de erva-mate na região da Serra e do Planalto Norte, transformadas em produtos de exportação a partir do porto de São Francisco do Sul, com passagem por intermediários que operavam em Joinville.

A estrada que trouxe riqueza para a região

Feita com carrinhos de mão, pás e enxadas, a Estrada Imperial Dona Francisca começou a ser aberta em 1853 e ficou pronta duas décadas depois. O “ciclo da erva-mate” teve seu auge entre 1870 e 1910 e só foi possível graças à estrada, dinamizando a economia de toda a região. O mesmo ocorreu com a madeira, trazida no lombo de burros ou puxada por bois da Serra e de Pirabeiraba para o “cais do Poschaan”, no rio Cachoeira, de onde era lavada a São Francisco do Sul e dali aos principais portos brasileiros e para Montevidéu, no Uruguai.

Carrocões abastecendo o comércio da Rua do Meio – Foto: Divulgação/ND

Na esteira dessas atividades surgiram empresas de renome, como a Lepper, a Lange e a Colin. Depois, foi a vez da Companhia Industrial Catharinense, uma das empresas mais importantes de Santa Catarina no final do século 19. Foi uma sociedade anônima que reuniu empresários que se cotizaram para lucrar com o comércio da erva-mate e que deu início, de fato, à acumulação de capital na cidade. Entre seus diretores estava Abdon Batista, que depois viria a ser governador interino do Estado, e entre os acionistas figuravam Carl Hoepcke e Cia. e membros das famílias Lobo, Schroeder, Wiese, Douat e Meyer, entre outras.

Bombeiros voluntários, um orgulho para Joinville

Criada em 1892, a Associação dos Bombeiros Voluntários surgiu em função da ausência do Estado no combate a incêndios e da percepção dos empresários de que não podiam mais depender só da sorte para tocar seus negócios sem se expor a sinistros. Essas lideranças se uniram, trouxeram equipamentos da Alemanha e só não foram pioneiros no Brasil porque, no Rio de Janeiro, dom Pedro 2º já havia criado, em 1856, uma corporação de combate a incêndios que atendesse às necessidades da corte imperial.

Na Alemanha, desde junho de 1841, já existiam bombeiros voluntários, modelo que permanece até os dias atuais, sendo replicado em diversos países europeus. “Como lá, aqui também, em casos de incêndio, um sino tocava na torre da corporação”, informa o presidente da associação, Moacir Thomazi. Depois, o alerta à população era replicado por cornetas estrategicamente distribuídas pela cidade para que todos pudessem ouvir.

Porto do então navegável rio Cachoeira, atrás, o Mercado Público antes de ganhar fachada enxaimel – Foto: Divulgação/ND

Exemplo perfeito de associativismo, os bombeiros voluntários são um orgulho da cidade e, à exceção do pessoal administrativo, todos – cerca de 90% de todo o contingente – é voluntário. “No começo, eles pagavam para fazer parte da corporação, e hoje os interessados passam por uma seleção rigorosa para poder integrar a equipe”, afirma o presidente.

“Os bombeiros voluntários, assim como outras entidades centenárias na cidade, são fruto do espírito associativista dos imigrantes”, diz Thomazi, que preside a corporação desde 2008. Pessoas de diferentes idades e extratos sociais dedicam parte de seu tempo à corporação – dentistas, médicos, engenheiros, advogados, empresários e funcionários públicos. E há os operários, que muitas vezes saem de seu plantão de 12 horas e vão direto para as fábricas cumprir sua jornada normal de trabalho. O bombeiro com mais tempo em atividade no mundo, Romeu Dressel, está ali há 64 anos. O próprio prefeito da cidade, Adriano Silva, e seu chefe de gabinete também integram a corporação.

A eficácia dessa marca registrada de Joinville pode ser medida pelo fato de não haver atuação dos bombeiros militares no combate a sinistros na cidade – eles apenas respondem pelas vistorias. Hoje, há oito subunidades em vários bairros da cidade, refletindo uma capilarização que também espalhou os bombeiros voluntários pelo Estado. Eles recebem 240 horas de treinamento e fazem um estágio de 60 horas, em situação de ocorrências, além de se submeterem a uma seleção rigorosa antes de serem incorporados. A força da tradição também pode ser avaliada pelo fato de a entidade, em 132 anos de atividade ininterrupta, estar no 11º comandante.

O atendimento chega a 100% dos chamados num curto período de até sete minutos, dentro dos padrões internacionais que determinam a excelência do serviço. O Estado tem outras 32 associações de bombeiros voluntários, que se esmeram para ser sempre as melhores e mais eficientes.

Carroções descendo a estrada Dona Francisca – Foto: Divulgação/ND

O jornal que ajudou a unificar a colônia

O historiador Apolinário Ternes cita outro exemplo de associativismo que resultou num avanço significativo para Joinville. Em 1862, sob o comando do advogado Ottokar Doerffel, foi criado o “Kolonie-Zeitung”, jornal escrito em idioma alemão para manter os imigrantes informados, dar notícias do que acontecia na Europa e publicar anúncios de interesse da colônia. Os equipamentos foram trazidos da Alemanha, a partir de cotas envolvendo empresários da cidade. O periódico teve vida longa – foi testemunha dos progressos e anseios da colônia até 1942, quando o presidente Getúlio Vargas proibiu a circulação de jornais em língua estrangeira.

Sociedades e tradição

A Sociedade Ginástica de Joinville, criada em 1858 e considerada a mais antiga da América Latina, mostra que o cuidado com o corpo não é uma moda da contemporaneidade. Depois, como Sociedade Harmonia (Harmonia Gesellschaft), continuou atendendo aos joinvilenses, até se unir ao Lyra, em 1921, e gerar a Sociedade Harmonia Lyra, também fundada e 1858 e plenamente ativa até hoje.

Empresas que começaram no fundo do quintal

Outros exemplos de associativismo são os clubes de tiro, sociedades beneficentes e inúmeras empresas que começaram como simples oficinas e se transformaram em indústrias de fundição, como a Schultz, de 1946. O embrião da Fundição Tupy já existia – como uma ferraria para rodas de carroças – 40 anos antes se se tornar uma potência com clientes em todos os continentes.

“Os imigrantes tinham um padrão de vida razoável, mas precisaram lutar pelo pão de cada dia, como também faziam na Alemanha”, ressalta o escritor Apolinário Ternes. Neste sentido, o associativismo e o espírito colaboracionista e comunitário sempre predominaram. Na indústria, isso é patente no próprio papel da Acij (Associação Empresarial de Joinville), que tem mais de 100 anos e se mantém fiel à missão de fortalecer o setor e aumentar a competitividade das empresas associadas.

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