Invisíveis? Mortes de pessoas em situação de rua em Florianópolis crescem 300% em 2024

Somente nos primeiros cinco meses de 2024, o número de mortes de pessoas em situação de rua em Florianópolis subiu 307,6% em comparação a todo o ano de 2023, segundo a prefeitura. O fenômeno expressivo de crescimento dessa população preocupa autoridades públicas e divide opiniões, em Santa Catarina, se tornando um problema de saúde e segurança pública.

Em contrapartida, as pessoas que ainda vivem nas ruas e às margens do acesso a direitos básicos enfrentam o preconceito e veem suas existências caírem no esquecimento ao ponto de não existirem padronização de dados sobre essa população.

Pessoas em situação de rua dormem na rua - foto em alta exposição mostra uma pessoa dormindo em banco de praça

Aumento no número de pessoas em situação de rua é considerado um ‘fenômeno’ por especialistas – Foto: Divulgação/ND

A série ‘Rostos na Multidão’ retrata ações existentes que buscam amenizar a desumanização de pessoas que vivem nas ruas. A reportagem ouviu especialistas, pesquisadores e projetos atuantes para apontar caminhos que podem ajudar na elaboração e consolidação de políticas públicas eficazes na diminuição do contingente de pessoas nessas condições.

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  • PSR: sigla de Pessoa em Situação de Rua ou População em Situação de Rua.
  • POP Rua: sigla para População em Situação de Rua.
  • Censo SUAS: protocolo de monitoramento que recolhe dados via formulário eletrônico preenchido pelas Secretarias e Conselhos de Assistência Social dos Estados e Municípios.

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O Decreto nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, que instituiu a PNPSR (Política Nacional para a População em Situação de Rua), define esse público como “o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória”.

No entanto, a adesão à PNPSR fica a critério de estados, municípios e Distrito Federal. Desde que, se implementada, sejam respeitados “os princípios, diretrizes e objetivos” previstos no decreto, entre eles, o atendimento humanizado e o acesso amplo em políticas públicas de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança e afins.

Até julho de 2023, o Brasil tinha 221.113 mil pessoas em situação de rua cadastradas no CadÚnico (Cadastro Único) do Governo Federal, número que representa quase o dobro em comparação a 2018, ano de início da série histórica. Entre 2015 e 2022 foram registradas 48.608 notificações de violência contra as PSRs no Sinan (Sistema de Informação de Agravos) do MS (Ministério da Saúde).

Violência histórica

19 de agosto de 2004. Um crime que ficou conhecido como ‘Massacre da Sé’, marcou a história brasileira pela brutalidade no ataque que matou sete pessoas em situação de rua e deixou outras oito feridas, na madrugada dos dias 19 e 22 de agosto. Todas as 15 pessoas dormiam na Praça da Sé, no Centro de São Paulo, quando sofreram o atentado.

Em 2024, o crime completa 20 anos. A data ficou marcada como o Dia Nacional da Luta da População em Situação de Rua, que busca conscientizar o público sobre o respeito aos direitos da POP Rua. Movimentos sociais de vários estados brasileiros se mobilizam na data para oferecer atendimentos de saúde, cidadania, distribuição de alimentos a quem precisa e como forma de protesto em memória às vítimas.

Além das vulnerabilidades já existentes pela condição em que vivem, as PSRs também viram alvos de ataques violentos, como o ocorrido na Sé, motivados, em geral, pelo preconceito e a discriminação.

O conceito ‘aporofobia’ é utilizado para definir a aversão, desprezo e medo de pessoas pobres, que pode se manifestar de forma individual ou coletiva. O termo foi criado em 1990 pela filósofa e escritora espanhola Adela Cortina – e no Brasil, também é conhecido como ‘pobrefobia’.

“Eles se queixam de violência, misoginia, abuso sexual, a intolerância, seja ela política, religiosa ou de orientação sexual. Se olhar a história deles, esses fatores foram os motivos que, predominantemente, os levaram para a rua, além, claro, da situação econômica, como a falta de emprego e o despejo”, explica o coordenador da Associação Rede Com a Rua, uma OSC (Organização da Sociedade Civil) que atua na distribuição de refeições e apoio a PSRs, Roberto Brasiliense.

Pessoas sentadas na beira da calçada em frente à loja, as pessoas vivem em situação de rua

Pandemia da covid-19 impactou significativamente no aumento do número de pessoas nas ruas – Foto: Divulgação/ND

A Rede Com a Rua é uma junção de coletivos que se dividem em dias alternados para não deixar faltar as refeições básicas para a POP Rua em Florianópolis. Além da alimentação, o projeto distribui cestas básicas a esse grupo no primeiro sábado de cada mês e auxilia as famílias em trajetória de rua com suprimento de gás, o mesmo utilizado na cozinha comunitária responsável pela preparação das refeições.

“Se fizermos uma pesquisa nacional, achamos comentários sobre algo que aconteceu com pessoas em situação de rua, mas sempre ‘ele matou’, ‘ele roubou’ ou ‘ele sujou’, ‘gritou’. Raramente vemos publicações falando sobre políticas públicas”. – Roberto Brasiliense, coordenador da Rede Com a Rua

Pessoa dormindo na rua enrolada em lençol

Falta de abrigo adequado deixa a POP Rua mais vulnerável à violência e ao desenvolvimento de doenças – Foto: Divulgação/ND

Saúde em risco

Com a falta de acesso aos serviços básicos de saúde – seja pela dificuldade, desconhecimento ou medo do preconceito – essa população é frequentemente afetada por doenças e também pelas consequências de condições preexistentes não diagnosticadas.

Um levantamento exclusivo do ND Mais com base em dados da SES-SC (Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina) e da Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis, obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação), mostra o aumento de 85,7% no número de pessoas em situação de rua que morreram em SC, entre 2019 e 2023.

Em 2019, foram registradas 21 mortes em 12 cidades. São José (5), Balneário Camboriú (4) e Florianópolis (3) lideram. Os outros registros ocorreram em Tijucas (1), Itajaí (1), Araranguá (1), Itapema (1), Alfredo Wagner (1), Tubarão (1). Penha (1), Lages (1) e Canoinhas (1). Os números são da SES-SC.

No ano seguinte ao início da pandemia da covid-19, Santa Catarina registrou quatro mortes a mais de pessoas em situação de rua, totalizando 24.

  • São José – 5
  • Florianópolis – 3
  • Palhoça – 2
  • Joinville – 2
  • Tijucas – 1
  • Itajaí – 1
  • Itapema – 1
  • Tubarão – 1
  • Bombinhas – 1
  • Itaiópolis – 1
  • Guaramirim – 1
  • Barra Velha – 1
  • Governador Celso Ramos – 1
  • Nova Trento – 1
  • Brusque – 1
  • Biguaçu – 1

Em 2021, o cenário apresentou uma redução e chegou a marca de 19 mortes, com destaque para Florianópolis, com 5, e São José, com 3. Já 2022 teve um aumento significativo no total de óbitos, ao todo, foram 21 – somente a capital apresentou um salto de 80%, saindo de 5 para 9 mortes de pessoas em situação de rua.

A série dos últimos cinco anos mostra um cenário em crescimento, com um aumento expressivo nos dados em 2023: Florianópolis saltou em 400% no número de mortes, em comparação a 2019, quando teve três. Em 2023, 39 pessoas em situação de rua morreram em Santa Catarina, 15 delas na capital.

Número de mortes de PSR em SC (2019 a 2023):

 

Doenças infecciosas e parasitárias lideram causas das mortes

Entre as causas ou principais causas das mortes, segundo os dados do levantamento, as doenças infecciosas e parasitárias representam a maioria das alterações listadas nos laudos dos últimos cinco anos, especialmente pela exposição às mudanças de temperatura e a falta de abrigo adequado.

O ND Mais questionou o MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania) sobre os óbitos relacionados às mudanças climáticas e a DDPR (Diretoria de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua) do MDHC citou um “histórico não oficial”:

“Há um considerável histórico não oficial sobre as mortes da PSR em períodos de baixas temperaturas, registrados principalmente nas regiões sudeste e sul do país. Neste sentido, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania instituiu a Operação Inverno Acolhedor, com o objetivo de atender a população em situação de rua em períodos de frio extremo a partir de estratégias que visam estimular ações do Poder Público, no campo da assistência social, voltadas ao acolhimento da população em situação de rua”.

As ações, segundo a DDPR, “buscam prevenir o adoecimento e o óbito de pessoas em situação de rua ocasionados pelo frio intenso, por meio da distribuição de itens que ofereçam segurança e proteção térmica e promover ações de orientação da população em situação de rua a respeito dos cuidados de saúde e funcionamento da rede de serviços especializados no atendimento deste público”.

 

Ao ND Mais, a diretoria da SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade) apontou que existem diversos obstáculos que dificultam o atendimento dos médicos à população em situação de rua no Brasil, como os “vínculos precários”, de “estrutura” e a “falta de articulação dos serviços com os demais pontos da rede de atenção”.

“Em muitos municípios o atendimento da POP Rua está anexado fora de serviços, não integrados. As interseccionalidades presentes no cuidado a essa população, tais como racismo, violência e outras, também são um grande desafio”, explica a direção.

Dos 13 óbitos registrados pela Prefeitura de Florianópolis:

  • 3 foram por doenças cardíacas;
  • 2 por doenças hepáticas alcoólicas;
  • 2 por tuberculose associada ou não ao HIV/Aids;
  • 4 por outras doenças pulmonares (não especificadas pelo órgão);
  • 1 por causa não definida;
  • 1 por exposição ao frio.

Perfil de pessoas em situação de rua que morreram em SC nos últimos cinco anos – Infográfico: Gil Jesus/ND

Números indefinidos

O déficit nas informações representa um obstáculo na elaboração de políticas públicas eficientes e acessíveis, principalmente relacionadas à saúde. Atualmente não existem dados consolidados sobre o número de pessoas em situação de rua mortas no Brasil.

Como não há um protocolo nacional utilizado nos laudos cadavéricos para identificar a condição que vivem as pessoas, o número pode ser maior do que o registrado pelos órgãos públicos, prejudicando o desenvolvimento e contribuindo para o cenário de invisibilidade.

O ND Mais também perguntou ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania sobre as ações em andamento em relação ao censo de PSRs. A DDPR informou que não existe, até o momento, uma “padronização” na contagem dos óbitos, mas que “a temática é uma das pautas essenciais”. Leia:

“Até o momento, não há padronização, levantamento e troca de dados nacionais sobre o óbito de Pessoas em Situação de Rua – PSR, assim como sobre suas especificações (número de pessoas, causa das mortes, perfil socioeconômico, doenças e comorbidades que possam ter contribuído ou levado ao óbito, número de pessoas enterradas como ‘indigentes’ e as ações desenvolvidas para a redução)”.

**Até 2023, Santa Catarina tinha 8.824 pessoas vivendo em situação de rua, conforme os números do CGIE (Coordenação-Geral de Inteligência e Estudo para Inovação)/MDHC. No entanto, os dados são referentes apenas às pessoas em situação de rua inscritas no CadÚnico, dessa forma, podem não refletir o cenário real por não incluir a população sem o Cadastro Único para Programas Sociais.

Os cinco estados com maior percentual de pessoas em situação de rua no Brasil em relação à população geral – Infográfico: Gil Jesus/ND

“O aumento [no número de pessoas em situação de rua] no período de pandemia de covid-19 já era perceptível, principalmente no que diz respeito à perda de trabalho e renda. Não houve uma redução dos números de pessoas em situação de rua no estado. Neste sentido, compreendemos a importância da consolidação e aumento de políticas públicas exclusivas voltadas a esse perfil.”, diz a diretoria de Promoção dos Direitos da População em Situação de Rua.

O primeiro atendimento a esse público ocorre através dos Centros POP (Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua) e também em equipamentos como o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social).

Dados do MDHC de 2022, com base no Censo SUAS, mostram Florianópolis entre as capitais com o menor número de CREAS, ao lado de Cuiabá (MT), cada uma com dois centros.

  • Os CREAS também oferecem serviços de atendimento à PSR em casos de violação de direitos, como o PAEFI (Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos) que orienta o público em relação a condições de vulnerabilidade ou que oferecem risco ao indivíduo ou à família.

Especialistas defendem a importância de políticas públicas que deem qualidade de vida à POP Rua – Foto: Divulgação/ND

Indigentes?

Os números informados pelo estado mostram que, em 2023, das 39 mortes de pessoas em situação de rua, 15 delas foram em Florianópolis. Já os dados da prefeitura da capital mostram 13 óbitos, dois a menos que o registro estadual. Sobre a identificação dos corpos, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que todas as pessoas mortas foram identificadas naquele ano, conforme o SIM (Sistema de Informação de Mortalidade). O estado não informou se as pessoas mortas em 2023 foram identificadas.

O enterro de pessoas que se enquadram no perfil de vulnerabilidade socioeconômica, segundo a prefeitura, é assegurado na Lei municipal 11.015, de 28 de junho de 2023, que concede “o benefício funeral” pela “prestação de serviços e concessão de urna funerária para reduzir vulnerabilidade temporária provocada por morte de membro da família”.

No caso das PSRs “que estavam sendo acompanhadas por equipamentos/serviços da assistência municipal, a solicitação deverá ser feita por técnicos do equipamento, obrigatoriamente, o serviço da Secretaria Municipal de Assistência Social que além de apresentar vínculo de atendimento, acompanhamento e referência, realizou o último contato com o (a) falecido (a)”.

Entre os itens oferecidos no benefício, estão incluídos: uma urna mortuária adequada ao peso e altura do indivíduo, translados funerários no município de Florianópolis, capela para velório, isenção da taxa de sepultamento e a preparação do corpo.

O relatório da Gerência de Benefícios e Transferência de Renda da Assistência Social de Florianópolis informou que, no período de janeiro de 2023 a maio de 2024, foram registrados 53 óbitos de PSRs. Considerando as 13 mortes em 2023, somente o período de janeiro a maio de 2024 concentrou 40 mortes – número que representa um salto de 307,6% em comparação a todo o ano anterior.

“Até pouco tempo ouvíamos as pessoas falando ‘morador de rua’ e esse termo foi abandonado porque a rua não é um lugar de moradia, para qualquer pessoa. Hoje usamos a expressão ‘população’ ou ‘pessoa em situação de rua’. Isso é bem peculiar porque é situacional, ou seja, passageiro”, defende o coordenador da Rede Com a Rua.

Pessoa em situação de rua dormindo na calçada em foto preto e branco

Perda de emprego, problemas familiares, alcoolismo e abuso de drogas são alguns dos principais motivos que levam pessoas a viver em situação de rua – Foto: Divulgação/ND

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A segunda reportagem da série ‘Rostos na Multidão’ vai mostrar um projeto que atua em Santa Catarina auxiliando pessoas em situação de rua e seus animais, e a história de uma mulher que se reinventou na luta pelos direitos dessa população.

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