Em Florianópolis, gêmeas quase centenárias rompem as barreiras do tempo e espalham o amor

Chegar aos cem anos significa ter muita história para contar. E esse é o objetivo dessas duas gêmeas quase centenárias em Florianópolis que, desde o útero da mãe, são inseparáveis. Histórias? Isso não falta.

Maria de Lourdes e Maria das Dores vivem grudadas

Maria de Lourdes e Maria das Dores vivem grudadas – Foto: Arquivo pessoal

Certa vez, uma das duas chegou a olhar no espelho, observar e achar que a irmã estava ali parada bem na frente dela. É até difícil acreditar, mas quem relata o episódio diz que foi bem assim mesmo.

Em outra ocasião, a confusão foi do vendedor de gás. Ele atendeu uma delas na porta da casa onde moram no bairro Trindade, em Florianópolis. Quando a primeira cliente fez a compra e entrou, saiu a segunda também para pedir um botijão. O homem estranhou. Chegou a perguntar se a mulher estava louca, porque ela já tinha comprado o produto.Mas não era a mesma Maria, apesar da fisionomia e do primeiro nome serem idênticos.

Estas são algumas das histórias contadas pelos familiares das gêmeas quase centenárias da capital de Santa Catarina. Maria de Lourdes Flôres e Maria das Dores Schnorr completaram 99 anos no dia 22 de agosto.

Diferente de outros aniversários quando a comemoração era em dose dupla, desta vez, cada uma teve uma festa separada para poder reunir a maior parte da enorme família construída por elas.

As dificuldades inerentes da idade nem de longe inibem o sorriso, o bom humor e a troca de afeto entre as gêmeas univitelinas. Elas vivem grudadas uma na outra. É assim desde o nascimento.

Maria das Dores e Maria de Lourdes demonstram afeto entre elas e com os demais membros da família

Maria das Dores e Maria de Lourdes demonstram afeto entre elas e com os demais membros da família – Foto: Arquivo pessoal

Quando ficam lado a lado, as mãos estão juntas, gêmeas quase centenárias parecem coladas. Ou é o braço encaixado em outro braço que mostra o amor mútuo das manezinhas.

“A mais velha sou eu. Um pouquinho. Um minuto. Foi uma atrás da outra”, conta a Maria de Lourdes, resgatando na memória a história do nascimento delas contada pela mãe.

Naquele ano de 1925, ainda era comum os partos serem feitos em casa. As duas Marias nasceram no aconchego do lar em uma época onde Florianópolis ainda nem tinha a ligação terrestre entre a Ilha e o continente. A ponte Hercílio Luz estava na reta final da construção e seria inaugurada em maio de 1926, nove meses depois de as gêmeas quase centenárias virem ao mundo.

Meninas eram confundidas até pelos pais

As gêmeas quase centenárias são filhas de João Pio Duarte Silva e Idalina Leandra Martins. Quem nasceu em Florianópolis ou vive na cidade há certo tempo, deve estar familiarizado ou pelo menos ouviu alguma vez o nome do pai das gêmeas. A principal e mais conhecida rua do bairro Córrego Grande leva o nome de João Pio Duarte.

As Marias relatam que o pai teve 25 filhos. “Não com a mesma mulher”, contam elas, sorrindo. Os sucessores das gêmeas confirmam a informação. Os pais batizaram as irmãs com nomes bem parecidos. E aí não deu outra.

Quando João e Idalina chamavam por Maria, as duas atendiam. Elas não sabiam quem de fato estava sendo requisitada pelo pai ou pela mãe. O jeito foi encontrar uma forma para diferenciar as irmãs. Sobrou para a Maria das Dores. Ela recebeu um apelido dado pelo pai. “Quininha”, revela a Maria de Lourdes sem saber dizer ao certo de onde o pai tirou este apelido.

Até hoje é assim que os familiares chamam a Maria das Dores. Quininha para lá, Quininha para cá.

Maria de Lourdes e Maria das Dores eram acostumadas a serem confundidas quando mais jovens

Maria de Lourdes e Maria das Dores eram acostumadas a serem confundidas quando mais jovens – Foto: Arquivo pessoal

Nas fotos mais jovens, é bem difícil identificar quem é a Das Dores e quem é a De Lourdes. E aí está explicado porque até os pais confundiam. Quem fica ao lado das duas por alguns minutos nota que uma parece ser o espelho da outra.

E não somente pelas características físicas. O jeito de olhar e de falar, a ternura, a preocupação entre elas e com a família, os gostos. É tudo bastante idêntico.

Na juventude, uma era a companhia da outra. Gostavam de ir para bailes. E quem namorava mais? “Isso era perigosa”, fala Maria de Lourdes em referência à irmã. Mas depois de disfarçar ela confirma. “Não, não, fala a verdade. Eu tinha mais [namorados] do que tu [Maria das Dores]. Eu sempre dava uma fugidinha.” “Tu era mais esperta do que eu, minha filha”, retruca Maria das Dores.

Árvore genealógica

As gêmeas casaram. Maria das Dores se apaixonou por Xisto Schnorr, com quem teve seis filhos. A mais velha, Otilia Schnorr Jacques, tem 79 anos. Das Dores é vovó de 15 netos. É também bisavó de 16 bisnetos.

Maria de Lourdes formou família com José Francisco Flôres Junior. O casal teve três filhos. Renato José Flôres é o mais velho, com 78 anos. De Lourdes tem dez netos, 15 bisnetos e uma tataraneta. Os maridos das gêmeas quase centenárias já morreram.

As Marias educaram os filhos e transmitem para as gerações da família aquilo que aprenderam e herdaram dos pais. Osvaldo Schnorr, filho da Maria das Dores, enche os olhos de lágrimas ao falar da mãe e do legado construído por ela até aqui. “É uma mãe assim, inexplicável. Carinhosa, muito amor, muito dedicada aos filhos”, descreve a mãe, emocionado.

Netos e bisnetos mantêm uma relação muito próxima com as gêmeas quase centenárias. “Elas são o fundamento da nossa família. Foram o arrimo de família”, descreve a neta de Maria de Lourdes, Sônia Mara Flôres.

Maria das Dores e o marido Xisto seguram no colo as netas gêmeas, filhas da caçula do casal

Maria das Dores e o marido Xisto seguram no colo as netas gêmeas, filhas da caçula do casal – Foto: Arquivo pessoal

Os valores de família estão presentes em cada relato dos netos. Flávia Flôres, recorda de a avó apontar, em diversos momentos, a importância de se manter vivos os princípios do caráter. Rogério, Luiz e Renato têm a mãe, Maria de Lourdes, como a raiz firme de uma árvore.

Na terra, a raiz sustenta o tronco para os galhos e as flores permanecem vivos. Para os filhos, ela é o alicerce e o fundamento para manter a estrutura familiar.

Os três tentam levar adiante o exemplo da mãe. “Para que uma mãe melhor que essa?”, questiona Renato. “Uma sempre pergunta pela outra. A mãe sempre pergunta pela janela: ‘a Quininha já acordou? Dá uma olhadinha para ver se aconteceu alguma coisa com ela?’”, conta Luiz sobre a preocupação que uma tem com a outra.

Para quem convive com as Marias, o incentivo de ser hoje uma pessoa melhor do que ontem está na simplicidade com que as irmãs encararam a vida. Elas transformaram dificuldades em pedras para pavimentar o caminho da vida.

É de família

Parece que nascimento de gêmeas não é algo tão raro nesta família. Em meados de 1988, a Quininha foi fotografada com o esposo. Eles seguravam no colo dois bebês, ou melhor, duas bebês.

As meninas, na época recém-nascidas, são filhas de Luciane Schnorr Peters, a filha mais nova da Maria das Dores. E adivinha? “São gêmeas”, revela Luciane. Marina e Mariana, netas gêmeas da Quininha, estão com 36 anos. “Meu sogro também é gêmeo”, completa Luciane.

Pode ser coincidência? Nem as gêmeas quase centenárias sabem dizer ao certo. Pode ter alguma explicação científica, genética e no DNA? Certamente! Mas, para esta reportagem, ficamos com este detalhe na história das Marias. Vale mesmo pela curiosidade descoberta entre uma e outra conversa com os filhos.

Com exceção deste ano, as gêmeas quase centenárias sempre comemoraram seus aniversários juntas; na imagem ao lado, a festa de 90 anos

Com exceção deste ano, as gêmeas quase centenárias sempre comemoraram seus aniversários juntas; na imagem ao lado, a festa de 90 anos – Foto: Arquivo pessoal

Lavadeiras com orgulho

Se tem um assunto que enche as gêmeas quase centenárias de orgulho é o trabalho. Elas sempre ajudaram a colocar o pão na mesa de casa. Até porque, na década de 1940 quando estavam com 20 anos, tudo era bem mais difícil.

Era preciso dar duro, suar a camisa para conquistar dignidade e conforto. “Nós trabalhávamos de lavadeira”, conta Maria das Dores. As irmãs lavaram roupas para fora até sete anos atrás. Quando completaram 92 anos, decidiram que era hora de parar.

Maria de Lourdes e Maria das Dores trabalhavam nos tanques de casa mesmo, cada uma na sua. Elas moram uma ao lado da outra até hoje. Antigamente, quando não se tinha máquina de lavar, o processo era totalmente manual.

As peças mais encardidas primeiro iam para tambores de latão onde eram colocadas na água fervendo para facilitar a retirada da sujeira. Depois, tinham que esfregar tudo no tanque, secar, passar e engomar antes de entregar para o freguês.

Os filhos acompanharam de perto. Luiz, o mais novo da De Lourdes, lembra dos esforços que as duas faziam para atender 40 casas de clientes. “O trabalho era pesado, mas elas não reclamavam.”

Ele conta que a alegria das duas contagiava, e a qualidade do serviço conquistava quem contratava as irmãs para lavar as roupas. As Marias da Trindade eram bem conhecidas pelo trabalho como lavadeiras. Hoje, são gratas em relembrar os momentos que ajudaram a sustentar os filhos e, ao mesmo tempo, servem agora de exemplo de dedicação para toda a família.

Maria de Lourdes e a irmã trabalharam até os 92 anos como lavadeiras, lavando e passando roupas para clientes do bairro Trindade – Foto: Arquivo pessoal

Gêmeas quase centenárias, muito amigas e inseparáveis desde pequenas

Nas fotografias, as gêmeas revisitam o passado. Nas memórias, ainda preservadas, elas trazem para o presente as lembranças de uma vida quase centenária e sem brigas, garantem. “Mas, a gente nunca contava segredo. Os perigosos eu não contava para ela”, brinca Maria de Lourdes.

Se o corpo carrega as marcas do tempo, os corações das irmãs guardam a fonte da juventude do amor da qual elas querem continuar bebendo para nutrir o elo formado entre as duas. Juntas, as gêmeas quase centenárias pretendem chegar a agosto de 2025 para celebrar um século de vida. E juntas mesmo. Maria das Dores e Maria de Lourdes são unânimes. “Tem que ser juntas!” Uma sem a outra, nem passa pela cabeça delas.

Maria de Lourdes convive com Alzheimer e teve uma perda auditiva. Maria das Dores também tem dificuldades de audição. As duas usam aparelhos para ouvir melhor. Elas contornam as dificuldades com sede de viver.

Se existe alguma fórmula para chegar tão longe, as Marias dizem que está na amizade e na comida brasileira. “É comer bem, pirão com feijão, arroz e carne seca no feijão”, revelam. Seria este um segredo para viver mais? Se for, Maria de Lourdes não fez questão de esconder, mas tem alguns que ela nunca contou para irmã apesar da cumplicidade.

Na visita do ND à casa das gêmeas quase centenárias, na última segunda, havia vários familiares. Conversa vai, conversa vem, e, do nada, De Lourdes solta uma que rendeu boas risadas, no bom estilo de humor destas Marias. “Já morreu o Rogério [antigo namorado], por isso botei os nomes dos filhos”.

Desacreditada, Rogéria Silvia Flôres Martins, neta da Maria de Lourdes, questiona o pai. “Pai, sabias que o teu nome é Rogério por causa de um namorado da vó?”. De Lourdes, com um sorriso no rosto, confirma.

Na despedida da equipe, as Marias se levantam, dão um abraço, quase caem, mas são amparadas. Se no carinho de um abraço a idade pode desequilibrar o corpo, na vida delas sempre terá alguém por perto para firmar as Marias, irmãs de sangue e amigas inseparáveis.

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