Peixes contaminados com mercúrio colocam saúde da população amazônica em risco, indica estudo

Maioria dos peixes com maior concentração de mercúrio foi coletada em áreas de garimpo ilegal. Foto: Ibama

Um artigo publicado na revista científica internacional Journal of Trace Elements and Minerals alerta para o alto risco que a população da Amazônia apresenta de contaminação por exposição crônica ao metilmercúrio, uma das formas mais tóxicas do mercúrio, por meio do consumo de peixes da região. O estudo investigou os níveis de mercúrio total e metilmercúrio em peixes da Amazônia brasileira e realizou uma avaliação de exposição e caracterização de risco da população local. Como resultado, todos os cálculos de ingestão diária excederam – e muito – a dose de referência considerada segura para o consumo de metilmercúrio. Os cientistas também elaboraram um mapa georreferenciado, no qual é possível observar a relação entre o grau de contaminação dos peixes e as áreas de atividade de garimpo – principalmente do ilegal.

“O peixe faz parte da alimentação diária de boa parte da população amazônica, em especial a população ribeirinha. Dizer que há um elevado risco de exposição crônica ao metilmercúrio através do consumo de peixes amazônicos significa dizer que a população está ingerindo concentrações elevadas e diárias de metilmercúrio através do peixe, o que pode comprometer a sua saúde a longo prazo”, enfatiza a doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Alimentos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Milena Dutra Pierezan, coautora do artigo.

A exposição crônica ao metilmercúrio pode levar a danos neurológicos graves e comprometer o desenvolvimento cognitivo, motor e sensorial, além de afetar a saúde cardiovascular e renal. A situação é ainda mais preocupante para gestantes e lactantes, já que o metilmercúrio pode atravessar a placenta e prejudicar o desenvolvimento do feto, levando à má-formação física ou funcional. O metilmercúrio também pode ser transferido ao leite materno e ser ingerido pelo bebê, que ainda não possui o organismo preparado para lidar com o contaminante.

Milena Dutra Pierezan é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Alimentos da UFSC e coautora do artigo. Foto: arquivo pessoal

Além de Milena, participaram do trabalho a professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Alimentos da UFSC Silvani Verruck, o auditor fiscal do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) Rodrigo Barcellos Hoff e a professora do Departamento de Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal Fluminense (UFF) Eliane Teixeira Marsico.

Os cientistas fizeram uma revisão sistemática, que abrangeu 14 estudos, publicados entre 2019 e 2022. Os trabalhos analisaram os níveis de mercúrio total e de metilmercúrio de 39 espécies de peixes, capturados em diferentes épocas do ano, em rios e lagos de mais de 15 cidades de quatro estados: Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima. A partir desses dados, os pesquisadores calcularam a quantidade de metilmercúrio que a população desses locais consome diariamente.

“Os cálculos foram baseados em um modelo que considera diferentes variáveis: a concentração média de metilmercúrio determinada nos peixes da região, a frequência média de consumo de peixes pela população amazônica e o seu peso corporal médio. Com isso, é possível estimar a concentração de metilmercúrio que está sendo ingerida através do peixe, considerando as particularidades da população estudada”, explica Milena. Os cientistas também calcularam o potencial consumo em diferentes estações do ano e de uma população que se alimente majoritariamente de peixes carnívoros e de outra que consuma principalmente peixes não carnívoros.

Todos os cálculos excederam a dose máxima considerada segura – a quantidade de metilmercúrio que pode ser ingerida diariamente ao longo da vida sem causar efeitos adversos à saúde segundo estudos toxicológicos. A pesquisa indica que a ingestão de metilmercúrio através do peixe é de 10 a 34 vezes maior que a dose de referência, dependendo do estado – Roraima foi o que apresentou maior índice de ingestão do contaminante, seguido por Amazonas, Pará e Rondônia.

Os cientistas também cruzaram os dados georreferenciados sobre atividades de garimpo legal e ilegal compilados pelo Instituto Socioambiental (ISA) com os pontos de amostragem de peixes dos estudos selecionados, e constataram que os peixes que apresentaram maior concentração de mercúrio foram, em sua maioria, coletados justamente em áreas de garimpo ilegal. Devido à ausência de controle e fiscalização, a atividade ilegal costuma utilizar maior quantidade de mercúrio no processo de purificação do ouro, além do descarte inadequado dos resíduos, que contaminam o solo e os corpos d’água. Roraima, aliás, é um dos maiores pontos de concentração da mineração ilegal da Amazônia brasileira, o que pode ser um dos motivos da alta contaminação dos peixes no estado.

Além disso, o consumo exclusivo de peixes carnívoros representa um risco mais elevado de exposição ao metilmercúrio (28 vezes maior que a dose de referência) quando comparado ao consumo exclusivo de peixes não carnívoros (cinco vezes maior que a referência). Isso ocorre porque o metilmercúrio sofre um fenômeno chamado biomagnificação. Ou seja, ele se acumula progressivamente ao longo da cadeia alimentar, e espécies predadoras, que se alimentam de outros animais contaminados, costumam apresentar concentrações maiores das substâncias contaminantes. 

Orientadora de Milena, a professora Silvani Verruck, do Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Alimentos, é uma das responsáveis pelo estudo. Foto: arquivo pessoal

Os pesquisadores calcularam ainda qual seria a quantidade de peixe segura para ser consumida semanalmente, visando não ultrapassar a dose de referência. “A quantidade seria de aproximadamente 31, 147 e 173 gramas de peixe por semana para crianças, mulheres e homens, respectivamente. O consumo dessas quantidades seriam aplicáveis apenas a algumas regiões da Amazônia onde é relatado um menor consumo de pescado na dieta, mas, na maioria dos casos, essa quantidade é muito inferior à realidade do consumo da população amazônica, especialmente se tratando da população ribeirinha, por exemplo, cujo consumo é de quase 3kg de peixe por semana”, explica Milena.

É importante destacar que, mesmo que boa parte das espécies de peixe tenham apresentado concentrações de metilmercúrio acima da dose de referência, apenas 3% e 5% delas (para peixes não predadores e predadores, respectivamente) seriam consideradas “não conforme” pelos critérios da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O resultado é bastante diferente de quando se considera, por exemplo, o limite da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (Usepa, na sigla em inglês): 39% das amostras seriam consideradas fora dos padrões aceitáveis pela agência estadunidense. “Isso levanta uma dúvida a respeito da adequação da legislação ao nível de consumo de peixes praticado pela população amazônica”, salienta Milena.

A Anvisa estabelece o limite máximo de 1 micrograma (µg) de metilmercúrio por grama de peixe para predadores, e 0,5 µg de metilmercúrio por grama de peixe para outras espécies. Já o valor máximo permitido pela Usepa é de 0,3 µg para todas as espécies de peixe. A justificativa para essa diferença, segundo a pesquisadora, está relacionada às bases científicas e ao enfoque das agências: “a Anvisa foca mais na viabilidade comercial dos peixes, enquanto a Usepa baseia seus limites na proteção da saúde humana, especialmente de consumidores regulares de peixes”. 

Contaminação na Amazônia e medidas necessárias

Garimpo ilegal é um dos principais responsáveis pela contaminação do solo e da água, por utilizar maior quantidade de mercúrio no processo de purificação do ouro, além do descarte inadequado dos resíduos. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

Milena explica que a região amazônica é uma grande fonte de mercúrio inorgânico, que vai sendo liberado para o ar e para os corpos d’água conforme ocorrem atividades de mineração ou outras ações humanas que envolvem a erosão do solo ou a quebra das rochas. Essa espécie de mercúrio é pouco acumulada em nosso organismo. Ou seja, ela é excretada mais rapidamente e, portanto, é menos tóxica. Contudo, quando o mercúrio inorgânico atinge o ambiente aquático, o contaminante pode ser biotransformado pela ação de microrganismos, gerando o metilmercúrio. Por estar no ambiente aquático, ele é facilmente transferido aos peixes e acumulado no organismo humano após a ingestão. Por isso, o consumo de peixe é considerado atualmente uma das principais vias de exposição ao metilmercúrio.

“O consumo de peixe é importante nesta região, cultural e nutricionalmente falando. Sendo assim, seu consumo não deve ser desencorajado”, reforça Milena. Contudo, a pesquisadora defende que a população seja informada sobre os riscos associados ao metilmercúrio e que seja sugerida a adoção de algumas estratégias nutricionais protetoras, como o incentivo ao consumo majoritário de peixes não carnívoros, como o Tambaqui e o Pacu, que usualmente apresentam menores concentrações de metilmercúrio, e de uma dieta rica em selênio. Presente em alimentos como feijão, castanha e ovos, esse nutriente pode auxiliar a excreção do metilmercúrio do organismo e reduzir seus efeitos tóxicos.

Outra medida fundamental seria a implementação de programas de monitoramento contínuo dos níveis de mercúrio em diferentes espécies de peixes e períodos do ano. “Esses dados permitiriam a aplicação de intervenções nutricionais que possam reduzir os impactos da exposição ao mercúrio diante das condições atuais da região, especialmente em populações mais expostas, como as comunidades ribeirinhas”, afirma Milena.

A cientista salienta, ainda, que é crucial implementar ações que sigam as diretrizes da Convenção de Minamata, um tratado internacional voltado à redução dos níveis de mercúrio ambiental, do qual o Brasil é signatário. O acordo passou a ter força de lei após sua ratificação, entrando em vigor em novembro de 2017, e com promulgação pelo Decreto nº. 9.470, de 14 de agosto de 2018.

“Neste contexto, medidas a longo prazo poderiam incluir o fortalecimento da fiscalização e controle de atividades de mineração ilegal, que é uma importante fonte de liberação de mercúrio inorgânico no ambiente (o mercúrio inorgânico é utilizado em grandes quantidades para separar o ouro de outras sujidades no processo de purificação), e o estudo e implementação de alternativas viáveis e seguras para a purificação do ouro, de modo a reduzir ou retirar completamente o mercúrio inorgânico neste processo”, enfatiza Milena.

 

Camila Raposo[email protected]
Jornalista da Agecom| UFSC
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