Pesquisa da UFSC mostra impacto da covid-19 com expansão da pobreza e vulnerabilidade em SC

Comumente em destaque por indicadores socioeconômicos favoráveis, o estado de Santa Catarina sofreu mudanças nas suas estruturas social e econômica durante a pandemia de covid-19. O impacto não só intensificou a pobreza existente, como revelou a vulnerabilidade de uma parcela da população que já vivia à margem. Um projeto de pesquisa do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (Necat) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), financiado por um convênio entre a instituição e a Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), detalhou como a crise sanitária agravou a situação de pobreza e as dinâmicas do mercado de trabalho no território catarinense.

O professor Lauro Mattei, do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFSC e coordenador do Necat, explica que desde o início da pandemia o Núcleo desenvolveu um conjunto de ações para acompanhar a evolução da covid-19 em Santa Catarina, bem como analisar os principais impactos econômicos e sociais no estado. Essas ações transformaram o Necat em um dos principais espaços de referência acadêmica sobre a doença na região. “Recebemos, ao longo dos últimos dois anos, muitas demandas de estudos e análises sobre a situação social em Santa Catarina após a incidência da doença. Mesmo diante dos limites técnicos e operacionais, conseguimos fazer algumas pequenas análises preliminares, as quais não conseguiram compreender a verdadeira dimensão dos problemas causados pela pandemia, especialmente em termos da queda da renda e da expansão da pobreza no estado”, relatou.

Visando atender a essas demandas, surgiu o projeto Análise dos impactos da pandemia sobre as condições sociais da população catarinense. Além do professor Lauro, são também autores das publicações os seguintes pesquisadores do Núcleo: Samya Campana, Kauê S. Alexandre, Bonifácio Packer Testoni, Andrey de Paula e Silva, Pedro Henrique Batista Otero e Vicente Loeblein Heinen. O relatório final do projeto de pesquisa está em fase de elaboração e deve ser entregue à Fapesc até dezembro deste ano.

A mensuração da pobreza

Estudo sugere que uma abordagem multidimensional é essencial para compreender a real extensão da pobreza no estado. Foto: Marcello Casal/Agência Brasil

A publicação Existe forma adequada de medir a pobreza? aprofundou o debate sobre as formas de mensuração da pobreza, reforçando a necessidade de uma reeducação do senso comum catarinense a respeito desse fenômeno no estado, a partir dos dados oficiais que são comumente divulgados. “(…) entende-se que é relevante subsidiar teoricamente a discussão sobre aquilo que os dados evidenciam com relação à trajetória da pobreza e aquilo que o imaginário popular traz, de que o Estado não é ‘tão afetado’ por esse flagelo, como também não o foi durante e após a pandemia, algo que é reforçado devido à veiculação de dados, de fato, frequentemente ‘favoráveis’ (baixos) da pobreza catarinense, comparativamente a outras Unidades da Federação”, traz o texto.

A publicação ressalta a importância das medidas para o enfrentamento da pobreza, bem como os aspectos relacionados à maneira como ela deve ser conceituada e mensurada. Desta forma, realiza o comparativo entre as abordagens monetária e multidimensional. A primeira delas, amplamente utilizada, mede com base na renda, adotando linhas de pobreza definidas, como o “Dollar-a-day” do Banco Mundial, que fixa uma quantia mínima diária abaixo da qual uma pessoa é considerada pobre. Essa abordagem, ainda que útil para monitorar o número de pessoas vivendo com rendimentos muito baixos, é criticada por ser limitada, pois considera apenas a renda e ignora outras dimensões da vida humana que também afetam o bem-estar. Estudos indicam que uma análise puramente monetária pode deixar de captar outras formas de privação, como a falta de acesso à educação e à saúde, ou mesmo as condições de habitação.

Por outro lado, a abordagem multidimensional, inspirada nos escritos de Amartya Sen e promovida pelo Índice de Pobreza Multidimensional (MPI) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), considera uma gama de fatores além da renda, como saúde, educação e padrão de vida. Neste caso, a pobreza não se refere apenas à falta de renda, mas à falta de “capacidades” para se ter uma vida plena. Isto é, a incapacidade de o indivíduo acessar os meios necessários para desenvolver plenamente seu potencial humano.

A análise dessas duas abordagens partiu da evolução histórica das concepções de pobreza e tratou de como diferentes definições influenciam a formulação de políticas públicas. O estudo sugere que uma abordagem multidimensional é essencial para compreender a real extensão da pobreza, especialmente em um estado como Santa Catarina. Ainda que seja frequentemente destacado como o estado menos pobre do Brasil em termos monetários, a abordagem multidimensional expõe realidades que o indicador monetário não abrange, como a desigualdade de acesso a serviços básicos e a concentração de privações em determinadas regiões. Os dados indicam que, embora uma parcela significativa da população catarinense tenha renda acima da linha de pobreza, muitas pessoas ainda enfrentam dificuldades para acessar serviços essenciais.

O estudo também evidenciou o impacto da pandemia de covid-19, uma vez que a crise sanitária expôs fragilidades estruturais, afetando desproporcionalmente as populações mais vulneráveis e intensificando privações já existentes. Dessa forma, a pesquisa recomenda que a combinação das abordagens monetária e multidimensional seria mais eficaz para avaliar a pobreza em Santa Catarina, sugerindo que políticas baseadas apenas na renda não serão suficientes para atender às necessidades da população. A adoção do MPI como um indicador complementar à pobreza monetária permitiria uma visão mais realista da situação socioeconômica do estado, contribuindo para uma maior precisão na alocação de recursos e na formulação de políticas de longo prazo que promovam a inclusão social e o desenvolvimento humano.

Retrato da situação da pobreza em SC

O texto Retrato da situação de pobreza em Santa Catarina segundo o número de famílias registradas no CadÚnico entre 2014 a 2022 examinou as principais dinâmicas e variações no número de famílias cadastradas, por meio deste indicador, como base para revelar aspectos da pobreza no estado. A análise respondeu à percepção de que Santa Catarina seria menos afetada pela pobreza em comparação com outras unidades federativas, uma visão que os pesquisadores procuram questionar.

O documento enfatiza o papel do CadÚnico como uma ferramenta estratégica para mapear as condições de vida de famílias em situação de vulnerabilidade social, oferecendo uma visão além dos indicadores puramente econômicos. Criado pelo governo federal para identificar as famílias de baixa renda e proporcionar acesso a benefícios sociais, o cadastro permite uma análise de diversos aspectos das condições de vida dessas famílias, como acesso a serviços básicos, estrutura familiar e características da habitação. A partir desses registros, o estudo ilustra como a pobreza em Santa Catarina se manifesta de maneira desigual entre as diferentes regiões do estado e se intensifica em determinadas áreas devido a fatores estruturais.

Em 2014, Santa Catarina contava com aproximadamente 528.942 famílias registradas no CadÚnico. Esse número cresceu para 644.286 em 2022, indicando um aumento de 21,81% no período (acréscimo de 115.344 famílias). Esse crescimento reflete tanto a ampliação do acesso ao cadastro do governo quanto um aumento nas necessidades sociais e econômicas das famílias, intensificadas pela pandemia de covid-19, que afetou desproporcionalmente as populações mais vulneráveis. A análise indica que esse aumento não apenas revela uma maior conscientização e procura por ajuda social, mas também reflete um agravamento das condições de vida de uma parcela significativa da população.

A pesquisa subdividiu a análise entre as seis mesorregiões catarinenses: Serrana, Sul Catarinense, Oeste Catarinense, Grande Florianópolis, Norte Catarinense e Vale do Itajaí. Cada uma dessas delas apresenta características socioeconômicas e dinâmicas demográficas distintas, influenciando a distribuição da pobreza e os níveis de vulnerabilidade. Por exemplo, a região Serrana, embora tenha a menor representatividade populacional, detém uma das maiores proporções de famílias cadastradas em relação à sua população total. Em dezembro de 2022, essa relação alcançou 15,24%, um dos percentuais mais altos entre as mesorregiões, refletindo a permanência da pobreza em áreas menos urbanizadas e menos desenvolvidas economicamente.

A mesorregião do Oeste Catarinense também apresentou uma peculiaridade: foi a única região que mostrou uma variação negativa no número de cadastros durante o período investigado, com uma redução de 3,89% nos registros, passando de 133.332 para 128.149 famílias. Apesar desse declínio, o Oeste Catarinense ainda detém uma das maiores quantidades absolutas de famílias cadastradas. A Grande Florianópolis, por sua vez, registrou o maior crescimento percentual no número de registros, com uma variação de 64,85%, saltando de 69.197 famílias em 2014 para 114.071 em 2022. Esse aumento expressivo pode ser associado à intensa urbanização e à expansão da região metropolitana, que atrai migrantes em busca de melhores oportunidades, mas que, ao mesmo tempo, enfrenta desafios de inclusão social e habitação.

Dessa forma, assinalam os autores, a pobreza em Santa Catarina apresenta-se como um fenômeno complexo e multifacetado, que não pode ser plenamente capturado apenas pelos indicadores de renda. A utilização de uma abordagem multidimensional é essencial para compreender as reais necessidades da população, especialmente em contextos de crise como o da pandemia.

O mercado formal de trabalho no início da pandemia

Na pandemia, Santa Catarina perdeu aproximadamente 236 mil postos de trabalho formais em apenas nove meses. Foto: Agência Brasil/Divulgação

A publicação O comportamento do mercado formal de trabalho em Santa Catarina durante os dois primeiros anos da pandemia investigou os principais efeitos da covid-19 sobre o emprego, categorias ocupacionais, setores econômicos e grupos demográficos, de 2019 a 2021. No contexto pré-pandêmico, Santa Catarina, assim como outras regiões do Brasil, já enfrentava desafios estruturais, como o aumento da informalidade e a precarização de vínculos de trabalho. Em 2019, o estado apresentava uma taxa de formalização relativamente alta – o que, segundo o estudo, contribuiu para uma mitigação parcial dos impactos mais severos da pandemia. Entretanto, a crise sanitária e econômica trouxe perdas significativas ao emprego formal em vários setores, especialmente no comércio e em atividades dependentes de contato físico.

A pesquisa utilizou duas fontes de dados principais: a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) e o Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Os dados da PNADC revelam que, em 2020, Santa Catarina registrou uma queda histórica no nível de ocupação, com uma redução de cerca de 112 mil trabalhadores no mercado formal. Em comparação com a média nacional, o estado teve um desempenho relativamente melhor, devido à sua maior formalização e estrutura econômica, que inclui setores menos afetados pelo distanciamento social, como a indústria de alimentos.

A análise setorial revela que, em 2020, as áreas mais impactadas foram o comércio e os serviços. No comércio varejista, especialmente em segmentos não essenciais, como vestuário e calçados, houve um declínio significativo, enquanto setores essenciais, como supermercados, conseguiram se estabilizar ou até crescer. No setor de serviços, as atividades de alojamento e alimentação sofreram uma retração de 15,4% devido às restrições de mobilidade. Em contrapartida, setores como saúde e serviços administrativos e complementares apresentaram crescimento, impulsionados pela demanda de serviços essenciais e pela necessidade de higiene e segurança.

Em 2021, com o avanço da vacinação e a flexibilização das restrições, houve uma recuperação parcial no mercado formal de trabalho catarinense. O estado registrou um aumento de 6,1% no estoque de empregos formais, com um saldo positivo de 144 mil vagas. O setor de comércio foi um dos principais beneficiados, refletindo a retomada do consumo e a adaptação de modelos de negócios, como o fortalecimento dos “atacarejos”. A construção civil também apresentou forte expansão, com 10,5% de aumento no número de empregos, sustentada pela política monetária expansionista e pelo aumento da demanda habitacional.

Do ponto de vista demográfico, a análise indica que as mulheres foram mais afetadas no início da pandemia, mas também apresentaram maior recuperação em 2021, impulsionadas pela retomada do setor de serviços e da indústria de vestuário, nos quais elas têm maior predominância. Em termos de escolaridade, os trabalhadores com ensino médio completo representaram a maioria das novas contratações, enquanto as faixas com ensino fundamental completo e incompleto tiveram retração nos empregos formais.

Geograficamente, as mesorregiões do Vale do Itajaí e da Grande Florianópolis registraram os maiores saldos positivos de emprego de 2019 a 2021 – com 57,1 mil e 36,6 mil novos empregos formais, respectivamente –, em virtude da recuperação de setores como o comércio e a indústria têxtil. Em contraste, a região Serrana apresentou crescimento mais modesto, com apenas 6,8 mil novas vagas no período, refletindo limitações econômicas estruturais e uma menor participação em setores dinâmicos.

Impactos da pandemia: período 2014-2023

Já o texto Impactos da pandemia da covid-19 no mercado de trabalho catarinense: uma análise para o período de 2014 a 2023 examinou as transformações do mercado de trabalho no estado, com especial enfoque no impacto da pandemia. O período analisado foi seccionado em três fases: o contexto pré-pandemia (2014-2019), o auge da crise pandêmica (2020-2022) e o cenário pós-pandêmico (2023).

No período pré-pandemia, Santa Catarina experimentava crescimento econômico e apresentava a menor taxa de desemprego do país, embora a crise econômica de 2015 a 2019 tenha gerado aumentos nas taxas de desocupação e incentivado a informalidade. Nesse contexto, o trabalho por conta própria tornou-se uma alternativa para muitos trabalhadores, sobretudo nas regiões economicamente menos desenvolvidas, onde a falta de opções formais de emprego era mais evidente. Em 2019, por exemplo, a taxa de desocupação no estado chegou a 6,1%, ainda entre as mais baixas do Brasil, mas refletindo os efeitos da crise econômica nacional.

Com a chegada da pandemia em 2020, o mercado passou por uma desestruturação abrupta, com a taxa de desemprego atingindo 7,2%. Esse aumento foi resultado do fechamento de negócios e da interrupção de atividades econômicas, especialmente nos setores mais dependentes de interação social. Santa Catarina perdeu aproximadamente 236 mil postos de trabalho formais em apenas nove meses, o que representou uma queda de 6,26% no nível de ocupação do estado. Comparativamente, essa queda foi mais que o dobro do registrado durante a crise econômica de 2015, quando 100 mil empregos formais foram eliminados entre 2014 e 2016.

Houve também um aumento significativo no trabalho por conta própria e na informalidade. Muitos trabalhadores que perderam seus empregos formais migraram para ocupações autônomas ou informais, que cresceram rapidamente durante os anos da pandemia. Em 2020, por exemplo, o número de trabalhadores por conta própria em Santa Catarina aumentou em 10,2% em comparação ao ano anterior. Nos dois anos seguintes, com o avanço da vacinação e a flexibilização das medidas de distanciamento social, o mercado de trabalho experimentou uma recuperação parcial. Esse processo de retomada foi marcado por uma recuperação dos postos de trabalho no setor de comércio e construção civil, que tiveram incentivo do retorno gradual das atividades econômicas e pelo aumento do consumo. No entanto, a recuperação foi desigual, com predomínio de empregos de baixa qualidade, caracterizados por baixos salários, alta rotatividade e pouca ou nenhuma proteção social.

O estudo ressaltou ainda o papel dos auxílios emergenciais oferecidos pelo governo federal, que foram cruciais para evitar uma queda ainda mais acentuada na renda média da população. Com a suspensão desses programas, observou-se uma desaceleração na recuperação do rendimento médio, especialmente entre os trabalhadores mais vulneráveis. Em termos salariais, a renda média em Santa Catarina sofreu um crescimento modesto nos últimos anos, passando de R$ 3.238 em 2014 para R$ 3.382 em 2023, o que representa um aumento acumulado de apenas 4,4%. Esse valor demonstra que, embora tenha havido alguma recuperação no número de postos de trabalho, o rendimento dos trabalhadores permanece estagnado.

Com o término da pandemia em 2023, o mercado de trabalho catarinense recuperou levemente o nível de ocupação observado antes da crise sanitária. Contudo, os desafios estruturais persistem e a renda média continua abaixo do que seria necessário para uma recuperação completa do poder de compra, o que indica que a retomada econômica ainda precisa de políticas estruturais para garantir empregos formais e de qualidade.

Para o futuro, os pesquisadores recomendam que sejam implementadas políticas públicas voltadas à formalização e à qualificação profissional. Incentivar o desenvolvimento regional também é essencial para reduzir as disparidades intraestaduais e melhorar a qualidade de vida da população em áreas menos industrializadas, assim como o fortalecimento das redes de proteção social é considerado fundamental para enfrentar os desafios da informalidade e da precarização. Políticas que promovam a diversificação econômica e a geração de empregos de qualidade são vistas como cruciais para a recuperação sustentável do estado.

Maria Isabel Miranda e Maykon Oliveira
Agência de Comunicação | UFSC

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